Por Eduardo Viveiros de Castro
Começo por dizer que suspeito que nossa entrevista vai ter de abundar em
aspas; não apenas ou principalmente aspas de citação, mas sobretudo
aspas de distanciamento. Isso porque essa discussão – quem é índio?, o
que define o pertencimento? etc. – possui uma dimensão meio delirante ou
alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico
entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros
desse processo. Eles são pitorescos e relativamente inofensivos, desde que
a gente não acredite demais neles. Em caso contrário, eles nos devoram.
Donde as aspas agnósticas.
A questão que me foi colocada não pára de reaparecer desde que comecei a
estudar antropologia, já logo vão 30 anos. Naquela distante época,
estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura – era
o final dos anos de 1970 –, que nos queria enfiar goela abaixo o seu
famoso projeto de emancipação. Esse projeto, associado como
estava ao processo de ocupação induzida (invasão definitiva seria
talvez uma expressão mais correta) da Amazônia, consistia na
criação de um instrumento jurídico para discriminar quem era índio
de quem não era índio. O propósito era emancipar, isto é, retirar
da responsabilidade tutelar do Estado os índios que se teriam
tornado não-índios, os índios que não eram mais índios, isto é,
aqueles indivíduos indígenas que “já” não apresentassem “mais” os
estigmas de indianidade estimados necessários para o
reconhecimento de seu regime especial de cidadania (o respeito a esse
regime, bem entendido, era e é outra coisa).
Foi em reação a esse projeto de desindianização jurídica que apareceram as
Comissões Pró-Índio e as Anaís (Associação Nacional de Ação Indigenista);
foi também nesse contexto que se formaram ou consolidaram organizações
como o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e o PIB, o “Projeto Povos
Indígenas no Brasil” do CEDI (o PIB, como todos sabem, está na origem do
ISA). Tudo isso surgiu desse movimento, que se constituiu precisamente
em torno da questão de quem é índio – não para responder a essa questão,
mas para responder contra essa questão, pois ela não era uma questão,
mas uma resposta, uma resposta que cabia “questionar”, ou seja, recusar,
deslocar e subverter. “Quem vai responder a essa resposta?”, pergunta o
personagem de um filme de Herzog. Justamente: como responder à
resposta que o Estado tomava como inquestionável em sua questão, a
saber: que “índio” era um atributo determinável por inspeção e mencionável
por ostensão, uma substância dotada de propriedades características, algo
que se podia dizer o que é, e quem preenche os requisitos de tal qüididade
– como responder a essa resposta? Pois, a se crer nela, tratar-se-ia apenas de mandar chamar os peritos e pedir que eles indicassem quem era e quem
não era índio. Mas os peritos se recusaram a responder a tal resposta. Pelo
menos inicialmente.
Note-se que, naquela época, a questão de saber quem era índio não se
cristalizava em torno daquilo que se veio a chamar etnias emergentes,
fenômeno bastante posterior: foram tais novas etnicidades, ao contrário,
que surgiram da questão, respondendo a ela com uma resposta deslocada,
isto é, inesperada. O problema da época, muito ao contrário de qualquer
“emergência”, era a submergência das etnias, era o problema das etnias
submergentes, daqueles coletivos que estavam seguindo, por força das
circunstâncias (isto é um eufemismo), uma trajetória histórica de
afastamento de suas referências indígenas, e de quem, com esse pretexto,
o governo queria se livrar: “Esse pessoal não é mais índio, nós lavamos as
mãos. Não temos nada a ver com isso. Liberem-se as terras deles para o
mercado; deixe-se eles negociarem sua força de trabalho no mercado”.
Nosso objetivo político e teórico, como antropólogos, era estabelecer
definitivamente – não o conseguimos; mas acho que um dia vamos chegar
lá – que índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha,
algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma
questão de “estado de espírito”. Um modo de ser e não um modo de
aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de ser: a
indianidade designava para nós um certo modo de devir, algo
essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento
infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de
“diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade. (Um dia
seria bom os antropólogos pararem de chamar identidade de diferença e
vice-versa.) A nossa luta, portanto, era conceitual: nosso problema era
fazer com que o “ainda” do juízo de senso comum “esse pessoal ainda é
índio” (ou “não é mais”) não significasse um estado transitório ou uma
etapa a ser vencida. A ideia é a de que os índios “ainda” não tinham sido
vencidos, nem jamais o seriam. Eles jamais acabar(i)am de ser índios,
“ainda que”... Ou justamente porquê. Em suma, a ideia era que “índio” não
podia ser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável
estado de “branco” ou “civilizado”.
Acesse o texto na íntegra:
http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf