domingo, 25 de janeiro de 2015

No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é

Por Eduardo Viveiros de Castro

Começo por dizer que suspeito que nossa entrevista vai ter de abundar em aspas; não apenas ou principalmente aspas de citação, mas sobretudo aspas de distanciamento. Isso porque essa discussão – quem é índio?, o que define o pertencimento? etc. – possui uma dimensão meio delirante ou alucinatória, como de resto toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento. Costumam nascer monstros desse processo. Eles são pitorescos e relativamente inofensivos, desde que a gente não acredite demais neles. Em caso contrário, eles nos devoram. Donde as aspas agnósticas.
A questão que me foi colocada não pára de reaparecer desde que comecei a estudar antropologia, já logo vão 30 anos. Naquela distante época, estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura – era o final dos anos de 1970 –, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de emancipação. Esse projeto, associado como estava ao processo de ocupação induzida (invasão definitiva seria talvez uma expressão mais correta) da Amazônia, consistia na criação de um instrumento jurídico para discriminar quem era índio de quem não era índio. O propósito era emancipar, isto é, retirar da responsabilidade tutelar do Estado os índios que se teriam tornado não-índios, os índios que não eram mais índios, isto é, aqueles indivíduos indígenas que “já” não apresentassem “mais” os estigmas de indianidade estimados necessários para o reconhecimento de seu regime especial de cidadania (o respeito a esse regime, bem entendido, era e é outra coisa).
Foi em reação a esse projeto de desindianização jurídica que apareceram as Comissões Pró-Índio e as Anaís (Associação Nacional de Ação Indigenista); foi também nesse contexto que se formaram ou consolidaram organizações como o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e o PIB, o “Projeto Povos Indígenas no Brasil” do CEDI (o PIB, como todos sabem, está na origem do ISA). Tudo isso surgiu desse movimento, que se constituiu precisamente em torno da questão de quem é índio – não para responder a essa questão, mas para responder contra essa questão, pois ela não era uma questão, mas uma resposta, uma resposta que cabia “questionar”, ou seja, recusar, deslocar e subverter. “Quem vai responder a essa resposta?”, pergunta o personagem de um filme de Herzog. Justamente: como responder à resposta que o Estado tomava como inquestionável em sua questão, a saber: que “índio” era um atributo determinável por inspeção e mencionável por ostensão, uma substância dotada de propriedades características, algo que se podia dizer o que é, e quem preenche os requisitos de tal qüididade – como responder a essa resposta? Pois, a se crer nela, tratar-se-ia apenas de mandar chamar os peritos e pedir que eles indicassem quem era e quem não era índio. Mas os peritos se recusaram a responder a tal resposta. Pelo menos inicialmente.
Note-se que, naquela época, a questão de saber quem era índio não se cristalizava em torno daquilo que se veio a chamar etnias emergentes, fenômeno bastante posterior: foram tais novas etnicidades, ao contrário, que surgiram da questão, respondendo a ela com uma resposta deslocada, isto é, inesperada. O problema da época, muito ao contrário de qualquer “emergência”, era a submergência das etnias, era o problema das etnias submergentes, daqueles coletivos que estavam seguindo, por força das circunstâncias (isto é um eufemismo), uma trajetória histórica de afastamento de suas referências indígenas, e de quem, com esse pretexto, o governo queria se livrar: “Esse pessoal não é mais índio, nós lavamos as mãos. Não temos nada a ver com isso. Liberem-se as terras deles para o mercado; deixe-se eles negociarem sua força de trabalho no mercado”.
Nosso objetivo político e teórico, como antropólogos, era estabelecer definitivamente – não o conseguimos; mas acho que um dia vamos chegar lá – que índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de “estado de espírito”. Um modo de ser e não um modo de aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de ser: a indianidade designava para nós um certo modo de devir, algo essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de “diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade. (Um dia seria bom os antropólogos pararem de chamar identidade de diferença e vice-versa.) A nossa luta, portanto, era conceitual: nosso problema era fazer com que o “ainda” do juízo de senso comum “esse pessoal ainda é índio” (ou “não é mais”) não significasse um estado transitório ou uma etapa a ser vencida. A ideia é a de que os índios “ainda” não tinham sido vencidos, nem jamais o seriam. Eles jamais acabar(i)am de ser índios, “ainda que”... Ou justamente porquê. Em suma, a ideia era que “índio” não podia ser visto como uma etapa na marcha ascensional até o invejável estado de “branco” ou “civilizado”.

Acesse o texto na íntegra:
http://pib.socioambiental.org/files/file/PIB_institucional/No_Brasil_todo_mundo_%C3%A9_%C3%ADndio.pdf

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