domingo, 19 de abril de 2015

MAIS UM DIA DE ÍNDIO?

Patricia Sampaio*

Não é provocação. É só a constatação do que se repete todos os anos: chegou mais um 19 de abril, dia de índio. O cancioneiro popular já registrou o inconformismo cantando que, “antigamente, todo dia era dia de índio! ” É justa a fala, mas estou convencida de que não cabe a remissão ao passado. Ainda hoje, todo dia é dia de índio.

Basta acompanhar, com alguma seriedade, o extraordinário número de informações disponibilizadas na internet pelas entidades e associações indígenas para dimensionar o tamanho do drama vivido por dezenas de etnias país afora e, ao mesmo tempo, a densidade de suas ações políticas fazendo valer seus direitos constitucionais à terra e autogestão de seus territórios ameaçados – quando não tomados – pelo agronegócio e empreendimentos estatais que teimam em se assentar sobre terras e vidas arrasadas.

Tal como no passado, as terras indígenas continuam firmes na pauta da Câmara Federal. A demarcação de terras indígenas e quilombolas está em discussão sob o nome discreto de PEC215/2000 que pretende alterar a Constituição para favorecer o interesse dos ruralistas. Também continua o debate sobre políticas de ação afirmativa, inclusão social, educação diferenciada e as políticas de saúde. O leitor atento logo se dará conta de que os índios não desapareceram, ao contrário do que o senso comum acredita e vai reconhecer que sua presença se impõe para incômodo de tantos que é até difícil nominar. Tal como no passado, quando eles tiravam o sono de outros tantos.

Os índios são invisíveis? Nem tanto. Embora frequentemente ignorados, são capazes de lembrar ao “mundo branco” que as cidades também são, de algum modo, seus territórios. Parece ser este o recado dado quando, em abril/2011, um ônibus foi flechado na Zona Oeste de Manaus, como noticiou o jornal A Crítica. O motivo: o ônibus não atendeu ao sinal de parada! Confesse, leitor, que, ao menos uma vez, você já quis fazer algo parecido... O que talvez você ainda não saiba é que isso não é novidade em Manaus. No século XIX, era tão frequente que o Código de Posturas proibia que se atirassem flechas na cidade. O artigo foi revogado, mas os índios continuam aqui, demarcando novas fronteiras e atualizando suas formas de fazer política e este é apenas um exemplo prosaico.

Com isso, quero chamar a atenção dos meus colegas professores que, este ano, talvez fosse uma boa ideia não “fantasiar” nossos meninos e meninas de “índios genéricos”, desencarnados de História e desconectados de seu tempo como muitos desejariam que eles fossem. Para nós, povos da Amazônia, essa fantasia é ainda mais cruel porque aqui vivem cerca de 60% das etnias existentes no Brasil. Se considerarmos que mais de 70% da população amazônica vive nas cidades, é preciso reconhecer (ainda que muitos não queiram) que os índios compartilham os mesmos espaços urbanos que não-índios. Tentar mostrar às crianças histórias diferentes e do mundo real valeria muito a pena.

Tem quem acredite que os índios só existem como habitantes de um passado remoto e só podem ser considerados como tais quando exibem sinais reconhecidos que atestam sua genuinidade. Há quem afirme que suas lutas impedem o progresso do país e, não custa lembrar, também diziam isso no passado. Posturas equivocadas e preconceituosas que teimam em não ver o que está diante dos olhos todos os dias. Tentar apagar a presença indígena, tal como ela se configura no tempo presente, é tarefa inútil como a História já demonstrou. Não precisa levar uma flechada para saber que, até hoje, “todo dia é dia de índio”.


*Prof.ª Dr.ª Patricia Melo Sampaio do Departamento de História da UFAM e membro do POLIS - Núcleo de Pesquisa em Política, Instituições e Práticas Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)



Este artigo foi originalmente publicado no acritica.uol em 19 de Abril de 2012.

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