Patricia Sampaio*
Não
é provocação. É só a constatação do que se repete todos os anos: chegou mais um
19 de abril, dia de índio. O cancioneiro popular já registrou o inconformismo
cantando que, “antigamente, todo dia era dia de índio! ” É justa a fala, mas
estou convencida de que não cabe a remissão ao passado. Ainda hoje, todo dia é
dia de índio.
Basta
acompanhar, com alguma seriedade, o extraordinário número de informações
disponibilizadas na internet pelas entidades e associações indígenas para
dimensionar o tamanho do drama vivido por dezenas de etnias país afora e, ao
mesmo tempo, a densidade de suas ações políticas fazendo valer seus direitos
constitucionais à terra e autogestão de seus territórios ameaçados – quando não
tomados – pelo agronegócio e empreendimentos estatais que teimam em se assentar
sobre terras e vidas arrasadas.
Tal
como no passado, as terras indígenas continuam firmes na pauta da Câmara
Federal. A demarcação de terras indígenas e quilombolas está em discussão sob o
nome discreto de PEC215/2000 que pretende alterar a Constituição para favorecer
o interesse dos ruralistas. Também continua o debate sobre políticas de ação
afirmativa, inclusão social, educação diferenciada e as políticas de saúde. O
leitor atento logo se dará conta de que os índios não desapareceram, ao
contrário do que o senso comum acredita e vai reconhecer que sua presença se
impõe para incômodo de tantos que é até difícil nominar. Tal como no passado,
quando eles tiravam o sono de outros tantos.
Os
índios são invisíveis? Nem tanto. Embora frequentemente ignorados, são capazes
de lembrar ao “mundo branco” que as cidades também são, de algum modo, seus
territórios. Parece ser este o recado dado quando, em abril/2011, um ônibus foi
flechado na Zona Oeste de Manaus, como noticiou o jornal A Crítica. O motivo: o
ônibus não atendeu ao sinal de parada! Confesse, leitor, que, ao menos uma vez,
você já quis fazer algo parecido... O que talvez você ainda não saiba é que
isso não é novidade em Manaus. No século XIX, era tão frequente que o Código de
Posturas proibia que se atirassem flechas na cidade. O artigo foi revogado, mas
os índios continuam aqui, demarcando novas fronteiras e atualizando suas formas
de fazer política e este é apenas um exemplo prosaico.
Com
isso, quero chamar a atenção dos meus colegas professores que, este ano, talvez
fosse uma boa ideia não “fantasiar” nossos meninos e meninas de “índios
genéricos”, desencarnados de História e desconectados de seu tempo como muitos
desejariam que eles fossem. Para nós, povos da Amazônia, essa fantasia é ainda
mais cruel porque aqui vivem cerca de 60% das etnias existentes no Brasil. Se
considerarmos que mais de 70% da população amazônica vive nas cidades, é
preciso reconhecer (ainda que muitos não queiram) que os índios compartilham os
mesmos espaços urbanos que não-índios. Tentar mostrar às crianças histórias
diferentes e do mundo real valeria muito a pena.
Tem
quem acredite que os índios só existem como habitantes de um passado remoto e
só podem ser considerados como tais quando exibem sinais reconhecidos que
atestam sua genuinidade. Há quem afirme que suas lutas impedem o progresso do
país e, não custa lembrar, também diziam isso no passado. Posturas equivocadas
e preconceituosas que teimam em não ver o que está diante dos olhos todos os
dias. Tentar apagar a presença indígena, tal como ela se configura no tempo
presente, é tarefa inútil como a História já demonstrou. Não precisa levar uma
flechada para saber que, até hoje, “todo dia é dia de índio”.
*Prof.ª
Dr.ª Patricia Melo Sampaio do Departamento de História da UFAM e membro do POLIS - Núcleo de Pesquisa em Política, Instituições e Práticas Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Este artigo foi originalmente publicado no acritica.uol em 19 de Abril de 2012.
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